Quando, em 1994, participei como voluntária nas escavações do Campo Arqueológico de Mértola, descobri na Cooperativa Oficina de Tecelagem a lã mais macia que vira até então. Foi o meu coup de foudre com a lã portuguesa. Vim para Lisboa carregada com toda a que pude comprar, e dela nasceram uma camisola que durou mais de dez anos e um colete que ainda uso. Na altura, encontrar bons fios para tricot em Lisboa era uma missão impossível. Encontrar aquela lã fiada à mão, na cor de café com leite das ovelhas sarnubegas, foi uma revelação inesquecível. A minha visita a Mértola para conhecer o seu nascimento, combinada com as tecedeiras há quase um ano, aconteceu finalmente esta semana.
As tecedeiras de Mértola acompanham todo o processo que culmina na criação do fio que usam nas suas mantas. São elas que escolhem o rebanho cuja lã lhes parece mais macia (nesta região, historicamente conhecida pela qualidade das suas lãs, abundam as raças Merino branco e preto e Campaniça), são elas que negoceiam com o criador a qualidade do que lhes é vendido (quanto mais seleccionados e limpos forem os velos, menos trabalhoso é o processo), são elas que lavam a matéria prima, à mão e por processos que provavelmente não mudam há vários séculos, e são finalmente elas que escarmeiam e azeitam as fibras, preparando-as para a cardação e fiação, que são também ainda processos inteiramente manuais. É do cuidado e do tempo investido em cada um destes passos que nasce este fio, e é esta a chave que permitirá um dia voltarmos a fazer da nossa lã uma matéria prima de excelência e não um sub-produto abandonado com desprezo nos campos depois da tosquia, que é o que fazem actualmente grande parte dos pequenos produtores de ovinos.
O que fui aprender há dias, na companhia da Diane, foi todo o processo de lavagem da lã, que começa ao nascer do sol com a feitura do lume para aquecer a água e termina com o último pedaço de lã a ser estendido a secar sobre as pedras aquecidas pelo sol (a sequência completa de imagens está aqui). É um trabalho pesado e repetitivo, como todos os trabalhos do campo, em que estão presentes a terra, o ar, a água e o fogo. Entre muitos pormenores a merecer referência, noto a verificação da temperatura da água (se for quente demais enrija a lã) atirando-se-lhe para dentro uma cagaita (desperdício de lã normalmente sujo com as fezes da ovelha), que deverá ir ao fundo do alguidar e vir de seguida à superfície, a separação manual da lã sarnubega (a de cor castanha clara) em várias tonalidades diferentes (o que quer dizer que também por cá podemos ter muito mais cores naturais do que os habituais branco e preto), o facto de a lã ser lavada sem recurso a sabão ou detergente (a acção da água quente é suficiente para retirar a quantidade certa de sugo) e, finalmente, o asseio de todo o processo, que terminou com a D. Helena a arear os alguidares com um esfregão medieval feito ao momento com cagaitas, ervas e areia da margem do ribeiro.
*o título deste post é roubado ao do projecto A Música Portuguesa a gostar dela própria.
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